Semana do Servidor Público: Uma realidade situada entre a Sociedade do Espetáculo e a lanterna dos afogados
Por Antonio Rocha*
"Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que corre o sangue
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural!
A fim de que nada passe por imutável."
(Bertolt Brecht)
"Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que corre o sangue
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural!
A fim de que nada passe por imutável."
(Bertolt Brecht)
Em meio às
comemorações da semana do servidor público, que se encerraram no dia 28/10/2013,
após adentrar a um dos órgãos do Estado e ser congratulado com a belíssima
interpretação de Lanterna dos Afogados (composição de Herbert
Vianna), feita, não pelos Paralamas do Sucesso nem pela Maria Gadú, mas por
um dos servidores daquele órgão. A cena foi surpreendente, o que me estimulou à
elaboração de uma singela reflexão sobre o antagonismo presente nas chamadas
“administrações públicas modernas”, tão propagadas quanto ineficientes nos
diversos órgãos públicos do Estado do Acre, que envolvem não só os servidores
que integram os quadros efetivos da administração pública do Estado, mas,
também, os aqui denominados de “agentes públicos” que são contratados,
pelos governos, através das empresas terceirizadas, não como pessoas, mas
como postos de trabalho.
GUY DEBORD,
em sua obra- prima denominada: A Sociedade do Espetáculo, já dizia
que toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de
produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos, onde
tudo aquilo que é vivido se esvai na fumaça da representação.
O senso comum
dificilmente conseguiria compreender o que os déspotas que ocupam o poder são
capazes de fazer para exterminar a criticidade e solidificar as ilusões através
da propagação de ações cosméticas, cujo propósito é, quase sempre, mascarar as
suas reais intenções.
Estamos no meio de
uma sociedade marcada pela valorização da superficialidade. Como já nos ensinou
Feuerbach, prefere-se a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à
realidade, a aparência ao ser real. Enfim, uma relutância constante cuja
finalidade é, sempre, a camuflagem das dores e incertezas que assolam a
realidade dos fatos e incidem diretamente nas camadas mais vulneráveis dos
diversos segmentos da sociedade. Neste contexto, referir-me-ei, tão somente,
àquelas pessoas que integram as tais “administrações públicas
modernas”, sejam elas do quadro efetivo do Estado ou do trabalho precarizado
das empresas privadas que fornecem mão-de-obra aos governos.
Um evento com a
magnitude da semana do servidor público retrata, um pouco, essa contemplação
espetacular que ofusca os olhos e engana as mentes iludidas, para que não
percebam a dura realidade vivenciada, diariamente, pela grande maioria dos
homens e mulheres que dedicam uma parte importantíssima de suas vidas ao
serviço público. Uma honrosa função, tão desvalorizada pelos governos, mas, ao
mesmo tempo, tão grandiosa por contribuir com a vida dos milhares de cidadãos
brasileiros que necessitam das instituições públicas.
DEBORD é
contundente ao afirmar que enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra
todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar
iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa
senão a linguagem oficial da separação generalizada. Essa separação
está, cada vez mais, presente nos órgãos públicos cujos quadros de servidores
são compostos por “efetivos” e “terceirizados”.
Apesar de toda a
desvalorização para com o servidor público dos quadros efetivos da
administração pública, estes ainda podem contar com os mecanismos legais que
lhes garantem uma fragilizada liberdade na correlação de força com os vorazes
governos e seus agentes. Algo que não acontece com os “terceirizados” ou agora
denominados “postos de trabalho”. Isso tudo faz com que a terceirização
do serviço público, seja algo tão desejado pelos governos descomprometidos com
a classe trabalhadora.
Usando-se do
pretexto de desonerar o Estado, além das autarquias, empresas públicas,
sociedade de economia mista e fundações públicas, atualmente está em moda a
contratação de empresas particulares para fornecer mão-de-obra ao Estado. Uma
estratégia extremamente eficaz para esses governos, não por proporcionar melhor
qualidade nos serviços públicos, mas por ser um mecanismo injusto usado, entre
outras coisas, para controlar as relações sociais através da manipulação das
pessoas.
Esse tipo de contrato, por si só, já
faz parte do espetáculo das representações hipnotizantes. É evidente que tal
tipo de contratação não desonera a máquina pública, na medida em que essas
empresas são pagas com dinheiro público. No entanto, são muito eficazes no
espetacular processo de amordaçamento social, nas agressões contínuas aos
direitos dos trabalhadores, nos danos emocionais ocasionados pelo processo de
alienação de homens e mulheres que, apavorados com o terror do desemprego, se
submetem a todas essas mazelas e ainda são obrigados a conviver com as
insanidades de alguns chefes, que, sobrepondo-se à ética e a moral, impõem as
suas normas absurdas, onde nada que desagrade o seu ego pode ser permitido. Os
ungidos se comportam como verdadeiros deuses capazes de determinar as
alterações estéticas e a natureza biológica das pessoas. Determinam, por exemplo,
as vestimentas que cada subalterno deve usar, a forma de andar, a aparência, o
horário de sentir fome, sede ou de fazer suas necessidades fisiológicas. Algo
inaceitável numa sociedade tida como moderna.
Para esclarecer com maior lucidez o
significado do termo espetáculo neste contexto, recorro novamente a DEBORD (2003),
e ele diz:
O espetáculo é o discurso
ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo
elogioso. É o autorretrato do poder no momento da sua gestão totalitária das
condições de existência. É o coração da irrealidade da sociedade
real. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda,
publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente
da vida socialmente dominante.
O esforço do referido servidor que
usou sua voz para cantar e, com isso, aparentar uma normalidade irreal capaz de
acalmar os cidadãos e os seus colegas de trabalho, que se debruçavam
na busca dos argumentos convincentes para justificar o injustificável aos
cidadãos e cidadãs que não conseguiam resolver os seus
problemas, representa claramente essa sociedade do
espetáculo. Por outro lado, a canção escolhida (lanterna dos afogados) retrata
a angustia dos que sofrem com os descasos já mencionados e com as incertezas
que os seguem.
As estrofes da música Lanterna
dos Afogados, composta por Herbert Vianna, gravada
inicialmente pelos Paralamas do Sucesso e regravada por Maria Gadú, falam
por si só:
Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar
Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar...ohohoh
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar...ohohoh
Espero que as soluções esperadas não
demorem chegar. Ainda sonho em vivenciar um momento histórico onde as pessoas
sejam valorizadas pelo que são de verdade, não pelo que representam para um
sistema devastador de sonhos e propagador das ilusões mentirosas e
desestimuladoras. Mas, enquanto esse momento não chega, nossa realidade
continuará situada entre a sociedade do espetáculo e a lanterna dos afogados.
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* É servidor público
do Estado do Acre, lutador social e acadêmico do curso de Ciências Sociais da
UFAC.
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