Israel Souza[1]
As escolas de samba Paraíso do Tuiuti, Beija-Flor e Mangueira fizeram
história e marcaram indelevelmente o carnaval de 2018. A primeira abordou as
mais variadas formas que a escravidão assumiu ao longo da história brasileira.
Mostrando que as classes dominantes estão em geral ligadas ao Estado e ao
governo, mas não são idênticas a eles, da escravidão dos negros à reforma
trabalhista, a Paraíso do Tuiuti denunciou, acida e poeticamente, a elite
brasileira e Temer, o “Vampirão Neoliberalista”. Aquela imagem ficará na minha
retina por vários anos...
A Beija-Flor centrou fogo nas peripécias de Sérgio Cabral, ex-governador
do estado do Rio de Janeiro, responsável por uma crise monumental e hoje preso,
condenado por corrupção. Por sua vez, a Mangueira voltou sua artilharia contra
o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Justificando-se na
crise por que passam as finanças da cidade, mas incontendo seu preconceito
religioso contra o carnaval, este fez graúdos cortes nos repasses a serem
destinados à festa popular. Notícias falam de 50% de corte nos repasses.
Ao trazerem a crítica social para a avenida, essas escolas de samba
mostraram que política se faz dos mais diversos modos e nos mais variados
tempos e lugares. Nem a imprensa conservadora pôde contornar o fato. E assim o
clamor dos “condenados desta terra” subiu, chegando mesmo aos céus da
indiferença.
Isso foi, a um só tempo, um deleite e um delito. Um deleite para os de
baixo que esperavam suas angústias serem expressas e suas bandeiras, levantadas,
sobretudo, num palco em que se deita tanta luz. Num momento em que rareia o
pão, o “circo” ganha ainda mais importância. Desta vez, porém, o espetáculo que
este apresentou não agradou os de cima. Por isso, para estes e seus consortes,
isso foi um delito.
Coisas assim, tão distintas, não deveriam se misturar, dizem. O que
estes manifestam dessa forma é, conscientemente ou não, uma tentativa de
interditar e conformar a política e algo que faz parte essencial dela: o
dissenso. Procuram reduzir a política e o dissenso à sua dimensão mais pobre,
formal, domesticável, a fim de evitar ações constrangedoras e perigosas. E ali,
na avenida, o dissenso apareceu, forte, vibrante, encantador, livre,
inesperado. Levou medo aos de cima.
É a essa tática de interdição e conformação da política e do dissenso
que chamamos de política da antipolítica. A fim de evitar equívoco, importa
dizer que a política da antipolítica não é a negação pura e simples da
política. É, antes de tudo, a afirmação de um tipo de política (a que convém
aos de cima) em detrimento de outras (as que não convêm aos de cima, mas convêm
aos de baixo). Eis a razão de falarmos de interdição e conformação.
Olhando por este prisma, o caráter autoritário dessa tática é inegável.
Entretanto, nessa quadra histórica de crise em que são maculados grandes
partidos e figurões, ela tem sido utilizada e sustentada, nos mais variados
níveis, por figuras que já mostram seus interesses nas eleições deste ano.
Alguns exemplos para ilustrar.
Apoiado por setores do financismo e do empresariado, Henrique Meireles
(atual ministro da fazenda) se apresenta como alguém que representa a suposta
virtude do mercado contra os vícios do Estado e da política. Há alguns dias, em
propaganda partidária, disse que é preciso não ceder à tentação “populista”
(mote com o qual desqualificam e desprezam políticas sociais voltadas aos de
baixo) e que é necessário continuar com as reformas (mote com o qual defendem e
sacralizam a reorientação das políticas unicamente para favorecimento dos de cima),
por mais amargas estas que sejam.
Do mesmo modo como os de João Doria (prefeito de São Paulo), o
vocabulário e o perfil gerencial-mercadológico de Meireles servem para
desqualificar certo de política e afirmar outro. Interdição e conformação.
Com poucas variações, Luciano Huck segue o mesmo estilo. A mais, ele
traz a figura de bom marido e pai de família, do jovem apresentador carismático
que ajuda pessoas sem muitas condições a reformar suas casas e carros. É um
sujeito que se apresenta como alguém de “fora da política” que, por força de
seus valores e visão de mundo, negaria a política tal como ela se encontra
(degenerada em corrupção) e daria a ela outra forma (com virtudes, sem
conflitos, sem corrupção).
Bolsonaro é outro a usar desta tática. Apresentando-se como homem
honesto e de pulso firme, o moralismo é o ponto central de sua propaganda.
Mesmo estando há quase três décadas na função de parlamentar, agora se coloca
como alguém que nada tem com a política do jeito como ela está e que, com seus
valores morais, há de negá-la e dar a ela outra forma.
A política da antipolítica também se faz presente em terras acreanas.
Nesses dias, Rio Branco foi duramente castigada por uma forte chuva. Em poucas
horas, choveu 277,4 milímetros,
quase o esperado para um mês (280 milímetros). Inúmeros pontos da capital
ficaram alagados.
As críticas a Marcus Alexandre, prefeito da cidade e pré-candidato a
governador do estado do Acre pelo PT, não se fizeram esperar. Seus defensores
tiveram que reagir. Como pode, aproveitarem da dor dos outros para fazer
politicagem?, argumentavam em forma de pergunta.
Obviamente que a culpa pela drenagem precária não pode ser atribuída,
sem mais nem mesmo, ao atual prefeito. Mas as críticas têm sua razão de ser.
Afinal, já faz quase duas décadas seu grupo político dirige o Estado e fez
inúmeros empréstimos para - dizem - levar estruturas aonde falta estrutura e
para reestruturar o que o tempo e o desenvolvimento tornaram inadequado. No
mesmo sentido, vale frisar que já conta mais de uma década, ainda sob o governo
Binho, que disseram que iam fazer do Acre o “melhor lugar para se viver na
Amazônia”.
Ora, o tempo que este grupo já está à frente do governo e da prefeitura,
os empréstimos que fez e o que prometeu mais que justificam as críticas. É
certo que há, por parte de setores da oposição, o claro objetivo eleitoreiro -
como há, igualmente, naquelas fotos para que o prefeito fez pose ajudando os atingidos pela chuva. Daí a tratar toda
crítica como “politicagem” é, no mínimo, um despropósito.
Inegavelmente, há aí a tentativa de interdição e conformação da política
e do dissenso. Como nos casos discutidos acima, neste caso específico há também
um misto de moralismo e personalismo. Explícito, o autoritarismo é corolário
mais que necessário disso tudo. Podem até conceber que as massas façam
política. Mas não como protagonistas. Não quando e como querem. Apenas nos
termos que eles - os de cima, os que se julgam seus senhores - possam
referendar.
Nesse momento de crise e de apatia, o desserviço político desse tipo de
comportamento é gigantesco. Por isso, impõe-se continuar cantando e fazendo
valer no dia-a-dia, nos mais diversos tempos e lugares, das mais variadas formas,
o samba enredo: “Não sou escravo de nenhum senhor...”
[1] Cientista político, professor e
pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul, onde coordena
os projetos de pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia e Miséria
Política no Brasil. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de
uma ausência (PUBLIT: 2014) e Desenvolvimentismo na Amazônia:
a farsa fascinante, a tragédia facínora (no prelo). E-mail: israelpolitica@gmail.com
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